quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

A espera



Uma leitura Barthesiana...


“ESPERA : Tumulto de angústia suscitado pela espera do ser amado, ao sabor dos mais ínfimos atrasos (encontros, telefonemas, cartas, retornos).”


Quando ela chegou ao lugar do encontro, um café no centro da cidade, percebeu que estava cinco minutos adiantada. Tinha sido proposital a chegada antecipada. Não queria perder nem um só momento, quiçá correr o risco de se atrasar. Ele poderia não gostar. Quem sabe até chegar ao desvario de achar que ela não viria e, assim, ir embora.
Pois lá estava, mergulhada numa cadeira confortável, de braços envolventes e assento macio. Esperava. Não era ainda uma espera violenta. Era marcada de irrealidade, reparava em tudo e todos a sua volta: entravam, saiam, conversavam, riam e brincavam – eles. Eles não esperavam.
E logo se imaginou dentro de uma peça, num teatro. Tudo aquilo era uma encenação da qual ela era a única personagem. Todos faziam parte do cenário e ela se viu no prólogo da peça: constatou que esperava. Sozinha.
O atraso, até aí, era computável, não passava de uma entidade matemática. Começou então a olhar o relógio desesperadamente. Passaram-se dez minutos desde a sua chegada e nada. Ela já olhara no relógio inúmeras vezes - nove pra ser exato, quase uma por minuto - e nada. A entidade matemática, como quase todas as outras semelhantes, passou a incomodá-la. O prólogo terminava com uma decisão: sucumbir à angústia da espera.
Passou do prólogo para o primeiro ato. A encenação a seguir era marcada por inquietações que a deixaram imóvel, estática.“Não posso sair daqui. E se ele aparece e não me vê?. Devo ligar? Não, ele pode tentar ligar na mesma hora e dar ocupado. Vai achar que eu não me importo. Será que vim mesmo ao lugar certo? Tem tantos cafés no centro da cidade”.
Mais duas olhadas ao relógio, agora eram onze vezes, quinze minutos. A encenação continuava:
“-Será que não marcamos em outro horário? Pode ser que ele tenha chegado e não tenha me visto. Devo ir até a porta? Será que é esse café mesmo? Não, não pode ser”.
Depois da negação, de não acreditar no que estava acontecendo, começou o segundo ato: a cólera.“Ele não poderia fazer isso comigo. Nem ao menos uma satisfação... Ele poderia ter ao menos... Porque ele está fazendo isso comigo?"Depois de tantas perguntas e de mais de quase uma hora, ela percebeu que algo de errado “deveria" ter acontecido. Na verdade, só poderia ter acontecido algo.
Iniciou-se então o terceiro ato: a pura angústia, a angústia do abandono. Da ausência à morte em uma hora: ela estava interiormente em luto e, por dentro, chorava a morte do outro, sofria por ele, dedicava sua compaixão, seu reconhecimento ao “problema” – a ausência indesejada dele. Ela perdoou o atraso, na verdade já tinha certeza que a culpa não era, não poderia ser, dele. Ele não faria isso, não é de seu feitio, impossível acreditar. Acontece que já se passou uma hora e cinco minutos desde a sua chegada. O “cenário” começava a interagir com olhares curiosos, depois de estranheza e, enfim, de discriminação. O cenário não mais estava imune, ele a recriminava e a deixava desconfortável. Era hora de ir.
Caso ele tivesse chegado no prólogo ou no primeiro ato, ela o receberia e o encontro dar-se-ia como o “planejado” – pelo menos por ela.
Se por acaso a chegada acontecesse no segundo ato, aconteceria uma cena. A loucura no auge seria canalizada em indignação, briga, reconciliação e aconteceria o encontro.
Contudo se a chegada acontecesse no terceiro ato, no momento da compaixão, do sentimento de compreensão pelo qual ela fora tomada, as coisas seriam diferentes. E foram.
Ela suportou a espera, a solidão, a indignação, a raiva, a loucura, a estranheza e discriminação do “cenário”, porém não suportou o desprezo de sua compaixão, de sua preocupação.De repente, percebeu um vulto parecido com ele. A princípio não reagiu, já estava calejada pela quantidade de alucinações que o delírio da espera havia lhe causado, vendo-o em outros, em todos que se aproximavam. Porém, dessa vez, era ele. Esticou um pouco o pescoço para se certificar que era mesmo ele. Sim, o próprio, e pior de tudo: estava bem, estava vivo.
Levantou-se calmamente da cadeira onde se encontrava crispada, a mesma cadeira que nesse momento já quase fazia parte do seu próprio corpo, e caminhou lentamente para a saída dos fundos, não sem antes parar escondida atrás da máquina de café que estava no balcão e percebê-lo sentado, olhando o relógio, no prólogo da peça que, para ele, começava e que ela agora não tinha mais interesse em assistir. Deu as costas e partiu.
Sentou-se no ônibus e quase teve vontade de chorar. Quase, mas percebeu que o sentimento não era mais esse, não tinha dor suficiente para que chorasse. Sentiu-se confusa, sem saber ao certo o que deveria fazer. Tirou a agenda da bolsa, pegou um lápis e escreveu:
“Serei tua quando passares cem noites com seu violão em meu jardim, sob minha janela, disse a menina ao rapaz. Mas, na nonagésima nona noite, ele se levantou, colocou o violão debaixo do braço. e partiu.”
Fechou a agenda, olhou para o trânsito e sorriu, imaginando uma cortina de veludo bem grossa se abaixando e a platéia em pé aplaudindo.
imagem: Gustavo Rosa

3 comentários:

Anônimo disse...

ufa, quase nem respirei.

amo.

minimir disse...

Caramba, que angústia!

Muito bom, Ro!
Adorei.

Menininha bossa-nova disse...

Gostei muito mesmo.